Sumário do Artigo

Um estudo publicado na revista The Lancet despertou o interesse da opinião pública sobre um possível tratamento da covid-19 com um antidepressivo, a fluvoxamina. Como um fármaco psicotrópico poderia ser eficaz para tratar uma doença inflamatória causada por um vírus respiratório? Existe uma explicação para essa hipótese: uma interação entre a molécula de fluvoxamina e alvos no nosso corpo que participam do processo inflamatório. Neste artigo vou explicar um pouco sobre esses mecanismos. Vale dizer que para que este tratamento seja uma realidade na Covid-19, precisa haver um conjunto robusto de estudos pré-clínicos (em animais de laboratório) e clínicos (em humanos) comprovando sua eficácia. Vamos falar também sobre o fármaco e seus impactos na saúde, e assim contribuir para o uso racional deste medicamento.

Fluvoxamina: o que é e para que serve

A fluvoxamina é o ingrediente ativo dos medicamentos Luvox® e Revoc® (Abbott Laboratórios do Brasil Ltda.) vendidos no Brasil. É um fármaco da classe dos antidepressivos, um inibidor da recaptação seletiva de serotonina (ISRS), assim como a fluoxetina, a sertralina e o escitalopram. Foi criado nos anos 70 e aprovado pelo FDA (agência americana) nos anos 90. É indicado no tratamento psiquiátrico da depressão maior e do transtorno obsessivo compulsivo.

Mecanismo de ação antidepressiva da fluvoxamina
Figura 1 – Mecanismo de ação antidepressiva da fluvoxamina. Como outros ISRS (inibidores seletivos da recaptação de serotonina – 5-HT), a fluvoxamina bloqueia a reabsorção do neurotransmissor serotonina pelo neurônio pré-sináptico. Desta forma, a serotonina permanece por mais tempo na sinapse e assim aumenta a duração da ação por este neurotransmissor. A serotonina atua modulando estados de humor, e o aumento da sua ação atenua sintomas da depressão e da ansiedade.

A fluvoxamina interage com outros medicamentos?

Sim. A fluvoxamina inibe enzimas do metabolismo e interfere na eliminação de fármacos do nosso corpo. Assim, se a fluvoxamina for usada com tais fármacos, pode resultar no aumento do tempo que estes fármacos ficam no organismo. Isto pode aumentar o tempo de ação de um fármaco, ou ainda expor o paciente a doses altas no corpo que podem ser tóxicas. A fluvoxamina eleva o tempo de meia-vida (um índice para medir o tempo da substância no corpo) da cafeína para até 31 horas! Uma outra interação importante é com o paracetamol: a fluvoxamina aumenta o nível de metabólitos do paracetamol que podem ser tóxicos. Outros fármacos que têm seu metabolismo alterado pela fluvoxamina são os antipsicóticos clozapina e olanzapina, os antidepressivos duloxetina e clomipramina, o broncodilatador teofilina e o anticoagulante varfarina. Por cautela, recomenda-se evitar estas associações.

Quais são os efeitos da fluvoxamina?

A fluvoxamina melhora sintomas de depressão e ansiedade e reduz o comportamento compulsivo e os pensamentos obsessivos. Dentre os efeitos indesejáveis da fluvoxamina, estão sintomas gastrointestinais, agitação, ansiedade e insônia, que ocorrem nas primeiras semanas de uso. Pode causar indisposição, tremores, dor de cabeça, disfunção sexual, vertigem e boca seca. É um medicamento que requer retirada gradual (diminuição gradativa da dose – também conhecida como “desmame”) na interrupção do tratamento.

Ação anti-inflamatória 

Além de se ligar no recaptador de serotonina que está na membrana (superfície) nos neurônios, no cérebro, a fluvoxamina também se liga em receptores sigma-1 (S1R). Os S1R estão no interior das células, em organelas chamadas de retículo endoplasmático (figura 2). As células que possuem este receptor sigma em maior número estão no sistema nervoso central e em gânglios do sistema nervoso periférico. Células do fígado, do estômago, da glândula adrenal e dos testículos também possuem S1R (Hayashi e Su, 2004). Cientistas vêm estudando o papel deste receptor como alvo farmacológico para tratar doenças inflamatórias. Estudos demonstraram que este alvo pode modular a comunicação entre células do sistema imune e células do sistema nervoso, incluindo as células da glia. Este efeito melhora a neuroinflamação, sendo útil para tratar vários tipos de dor crônica (dor neuropática, osteoartrite, câncer).

Localização do receptor sigma-1, alvo da fluvoxamina
Figura 2 – Localização do receptor sigma-1, alvo da fluvoxamina. Este alvo possui funções importantes para a célula. Está em organelas como as mitocôndrias e o retículo endoplasmático. Na inflamação, a fluvoxamina ativa este receptor e diminui a produção de citocinas inflamatórias.

Vale também comentar que a serotonina tem um efeito imunomodulador que é estudado pelos cientistas desde 1986 (Sternberg et al., 1986). Portanto, a ideia de testar os ISRS como adjuvantes em doenças inflamatórias não é nova. Entretanto, cabe um alerta: não significa que quem faz uso deste tipo de antidepressivo – ISRS – tem menor risco de desenvolver a covid grave. A forma mais eficaz de combater o vírus SARS-Cov-2 é a vacina. A infecção pelo vírus da Covid-19 causa uma “tempestade inflamatória”, isto é, as células do sistema imune liberam uma grande quantidade de citocinas inflamatórias (substâncias que o nosso corpo produz para causar a inflamação). Este evento agudo leva a inflamação em vários órgãos, comprometendo suas funções. Por isso, o uso de fármacos que possam diminuir essa tempestade pode auxiliar no tratamento da doença.

Neuroinflamação, depressão e covid: efeito neuroprotetor 

A neuroinflamação é um processo inflamatório que se dá no sistema nervoso, e causa prejuízos cognitivos. Ocorre em várias doenças como a depressão, esclerose múltipla, Alzheimer, dependência química e pode ocorrer ainda pela infecção pelo SARS-CoV-2 (vírus da Covid-19). De acordo com dados recentes, o receptor sigma-1 está relacionado com a neuroinflamação, sendo que a ativação deste alvo pela fluvoxamina tem efeito anti-inflamatório (Rosen et al., 2019). Vários estudos têm discutido a relação entre a neuroinflamação e a covid-19, com consequências para o desenvolvimento e a piora da depressão. Em teoria, um fármaco com efeito antidepressivo e anti-inflamatório, como a fluvoxamina, pode ser útil na farmacoterapia da Covid-19.

Estudos com a fluvoxamina na Covid-19

Dados científicos mostram que:

1) a fluvoxamina possui muita afinidade pelo receptor sigma-1;

2) muitos estudos científicos mostram a função regulatória do receptor sigma-1 na inflamação (colite, esclerose, dor crônica, sepse, câncer);

3) estudos in vitro, pré-clínicos e estudos clínicos viram efeito anti-inflamatório da fluvoxamina.

Atualmente, existem 8 estudos clínicos que avaliam a fluvoxamina como possível tratamento na covid-19. A maioria destes estudos ainda está em andamento, no Brasil, na Europa, Estados Unidos e na Ásia. O maior estudo até agora foi publicado na revista The Lancet em Outubro de 2021, feito por grupos de pesquisadores brasileiros, canadenses e norte-americanos. Significa que estamos em uma fase inicial dos estudos e a determinação da eficácia da fluvoxamina na Covid-19 requer mais pesquisas com pacientes.

Em um artigo publicado em 2019 na revista Science, pesquisadores mostraram que o receptor sigma-1 é um inibidor essencial da produção de citocinas inflamatórias, em um modelo pré-clínico (animais de laboratório) de choque séptico. Neste mesmo estudo, eles testaram a fluvoxamina e verificaram que este fármaco protegeu os animais do choque séptico letal. Além disso, a fluvoxamina também diminuiu a resposta inflamatória em células imunes de sangue humano, confirmando assim o efeito anti-inflamatório (Rosen et al., 2019).

O que o estudo realizado no Brasil revela sobre a fluvoxamina na covid-19?

O estudo clínico publicado na The Lancet avaliou vários medicamentos candidatos a auxiliar no tratamento da Covid-19, dentre eles a fluvoxamina. A fluvoxamina foi administrada na dose de 100mg por 10 dias consecutivos, no estágio inicial da doença. Segundo os pesquisadores, a fluvoxamina foi o fármaco que mostrou uma resposta favorável na evolução da doença. Vale ressaltar que a fluvoxamina não mata o vírus, nem impede o vírus de se multiplicar. Algumas considerações importantes sobre o estudo:

1) O estudo foi duplo-cego (nem o paciente, nem o profissional de saúde conhecem o tratamento) sendo que 741 pessoas receberam fluvoxamina e 756 receberam placebo. Trata-se do estudo da fluvoxamina na covid-19 que envolveu o maior número de pacientes até o momento.

2) O estudo foi feito em hospitais de Minas Gerais no período entre Junho de 2020 a Agosto de 2021. Durante boa parte do estudo não havia vacina disponível no Brasil.

3) Os autores declaram que a vacinação não teve impacto nos resultados, pois apenas 6% dos participantes informaram ter tomado uma dose da vacina até o final do estudo.

4) O desfecho observado no estudo não foi o índice de mortes, que não teve diferença entre os grupos.

5) O estudo foi feito em pacientes com comorbidades (apresentam maior risco de ter a covid grave).

O estudo mostrou uma melhora em relação à hospitalização. Este dado levou em conta tanto a internação como a permanência na emergência por mais de 6 horas. Assim, parte dos pacientes seguiu o tratamento com a fluvoxamina em casa, o que dificulta o controle do tratamento pelos pesquisadores.

Agora, é esperar que outros estudos reproduzam estes resultados e  grupos de pessoas vacinadas e sem comorbidades sejam testados. Somente depois que outros estudos confirmarem este efeito teremos (ou não) a comprovação de eficácia da fluvoxamina na Covid-19.

Referências:

Aishwarya R, Abdullah CS, Morshed M, Remex NS, Bhuiyan MS. Sigmar1’s Molecular, Cellular, and Biological Functions in Regulating Cellular Pathophysiology. Front Physiol. Jul 7;12:705575. 2021

Hayashi T., Su TP. σ-1 Receptor Ligands. CNS Drugs. V. 18. P 269-284. 2004

Maurice T., Su TP. The Pharmacology of Sigma-1 Receptors. Pharmacol Ther. V.2 p 195-206. 2009

NbN-2 Neuroscience based Nomenclature 2nd edition, European College of Neuropsychopharmacology

Rosen DA, Seki SM, Fernández-Castañeda A, Beiter RM, Eccles JD, Woodfolk JA, Gaultier A. Modulation of the sigma-1 receptor-IRE1 pathway is beneficial in preclinical models of inflammation and sepsis. Sci Transl Med. Feb 6. 11(478). 2019

Sternberg E.M., Trial J., Parker CW. Effect of serotonin on murine macrophages: suppression of Ia expression by serotonin and its reversal by 5-HT2 serotonergic receptor antagonists. J Immunol. July 1, 137(1) 276-282; 1986

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